Violência por nada
Era noite de lua cheia. Nós éramos cinco, nos dois botes infláveis. Saímos do Arctic Sunrise bem no comecinho da noite, com o objetivo de projetar algumas imagens e mensagens que explicitassem para a população de Santarém (localizada no oeste do Pará) como a monocultura da soja, ao causar a destruição da floresta Amazônica, é prejudicial para a região. Sobre imagens de desmatamento e queimadas, os recados eram bastante claros: "Sem floresta, não há futuro", "Soja não traz progresso", "100% Crime" e "Cargill causa destruição". Já as frases, "Porto americano ilegal" e "Fora Cargill!!" foram sobrepostas à fotos do porto construído pela Cargill em 2003. Aqui, algumas explicações são necessárias.
Muita gente não sabe que a Cargill é uma poderosa multinacional dos Estados Unidos que atua nos mercados agrícola e de alimentos, em todo o mundo. De acordo com eles mesmos, além de financiar produtores, "a Cargill compra, vende, transporta, mistura, esmaga, processa, refina, tempera, distribui e entrega, aos consumidores de todo o planeta, o tempo todo". Considerada a maior companhia de capital privado do mundo, a Cargill ignorou a legislação brasileira ao construir, em Santarém, um porto graneleiro para exportar a soja produzida no Brasil para outros países, sendo que a Europa é o principal importador desse produto. O Ministério Público Federal avalia que este porto é ilegal, já que a companhia não apresentou o Estudo de Impacto Ambiental (EIA/Rima), procedimento considerado fundamental pelas leis do Brasil para obras deste porte. Afinal, parece bastante óbvio que para as comunidades locais é vital que análises técnicas sejam feitas sobre as possíveis conseqüências e impactos sociais e ambientais que uma construção dessas em plena floresta Amazônica certamente trará. No entanto, para a Cargill esses procedimentos parecem nada mais que uma grande bobagem.
Ainda, antes de descrever os acontecimentos desta noite "quente" de sábado, dia 13, acho importante contextualizar um pouco a atividade. No mês passado, o Greenpeace lançou o relatório "Comendo a Amazônia", em que, após anos de investigação, evidencia toda a cadeia de custódia da soja e como a expansão de sua monocultura vem contribuindo para a destruição da floresta Amazônica. Em outras palavras, algumas propriedades foram pesquisadas desde a condição da terra antes do cultivo da soja, para saber se ela foi grilada, por quem, quando, quanto foi desmatado, se houve invasão de terras indígenas, quem financiou a produção, quanto de soja foi plantado, quando, por quem, para qual porto essa soja foi transportada, qual o destino dela, onde e em que produtos foi processada, e quem são os consumidores finais da soja produzida na Amazônia.
Com este mapeamento inicial, foi possível estabelecer a relação entre multinacionais (além da Cargill, Bunge e ADM) e o grupo brasileiro Amaggi com o desmatamento, a grilagem de terras, violência e o trabalho escravo na Amazônia, dentre outros impactos da indústria da soja na região, que ainda constrói silos e infra-estrutura no coração da floresta e financia a abertura de estradas.
Desde 2004, o Greenpeace vem trabalhando com outras organizações ambientais e movimentos sociais da região de Santarém para dar visibilidade à destruição da floresta causada pelos grandes financiadores da soja e tentar reverter essa realidade. Por outro lado, setores diretamente interessados no lucro fácil obtido com a devastação da floresta e com a utilização de terras griladas para o cultivo de soja, iniciaram uma campanha contra o Greenpeace. Centrados na velha e falsa dicotomia: defesa do meio ambiente versus desenvolvimento, produtores de soja e defensores do agronegócio vêm utilizando a mídia local, dentre outros recursos, para convencer a população de que o Greenpeace pretende engessar a economia da região. A chegada do navio Arctic Sunrise, na última quinta-feira, 10, aumentou o clima de tensão na cidade.
Dito isso, voltemos aos nossos botes infláveis (tão conhecidos no mundo todo pelas corajosas ações prestadas à defesa da biodiversidade, suas baleias, etc), dessa vez atuando em pleno rio Amazonas.
E a noite esquenta mais ainda - Apesar de problemas como o fato da correnteza estar bastante forte (lua cheia mostrando sua força), dificultando o posicionamento ideal do projetor e o sincronismo entre os botes e o barco regional, ancoramos ali mesmo. Há cerca de 15 metros da orla da cidade, ponto de encontro dos moradores, especialmente nos fins de semana. E há cerca de 25 metros do barco regional, que já tinha pendurado um imenso pano branco que seria usado como nossa tela.
Após três ou quatro minutos daquele "cinema fluvial de protesto", um homem de chapéu, aparentando pouco menos de 30 anos, visivelmente insatisfeito, começou a gritar para nós. Não conseguíamos ouvir uma única palavra, mas era impossível não entender o que ele estava dizendo. Seu corpo não deixava dúvidas sobre o conteúdo de seus gritos. Enquanto a maioria dos presentes assistia passivamente, um outro homem, mais alto que a média dos nativos, se juntou a ele nos gritos ofensivos.
Colocando nossos capacetes, continuamos ali, exibindo as mensagens de que o verdadeiro desenvolvimento para Santarém passa, necessariamente, pela floresta em pé. De repente, um "simpatizante" do agronegócio apontou algo que eu não consegui identificar em nossa direção. A primeira coisa que passou pela minha cabeça era que se tratava de uma espingarda e que ele mirava o motor do bote. Gritei para alertar a equipe de que algo vinha daquela direção. A atitude dos mais experientes me acalmou de imediato.
Com o acender do fósforo, pudemos ver que o que estava sendo direcionado diretamente a nós, e também à tela, eram "somente" rojões. Durante alguns poucos minutos, permanecemos lá, nos esquivando como podíamos e utilizando dois assentos de cadeiras como escudos. Agora, eles já eram quatro ou cinco tentando nos atingir com os fogos de artifício que faziam um terrível barulho mesmo quando estouravam na água. Uma das integrantes da equipe foi atingida no calcanhar por um dos pedaços do rojão ainda em chamas. Outro foi atingido na perna. A intensidade do ataque, fez com que, por questões de segurança, nós deixássemos o local, rapidamente.
Impressionados com a agressiva reação a uma manifestação tão pacífica, ainda antes de voltar para a nossa base, o Arctic Sunrise, fomos informados de reações violentas também com pessoas na terra e de que o fotógrafo local da Gazeta de Santarém havia sido esmurrado, jogado ao chão e chutado.
Enquanto ouvia pelo rádio, simultaneamente, a noite clara permitia ler a faixa colocada no lado oposto da tela, no barco regional, o artigo 225 da Constituição Brasileira que diz: "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".
Que ironia!!
***
Demorei a pegar no sono... Eram várias as inquietações. Basicamente, não consigo entender por que nós, seres humanos, em pleno século 21, ainda nos comportamos como seres irracionais, que colocam a ganância e o egoísmo acima de qualquer coisa, de qualquer outro valor. Usamos até mesmo de violência para garantir que ninguém coloque em risco o "nosso" patrimônio. Em nome "deste patrimônio", da "propriedade", pode se até matar. Independente desta propriedade ter sido grilada, roubada, etc. Pode ser que ali se explore o trabalho de escravos, que se destrua a maior floresta do planeta e suas milhares de espécies, que se contamine a água utilizada por milhares de pessoas. Pode ser que comunidades tradicionais tenham sido expulsas violentamente dessas terras. Nada disso importa. O que importa aqui é que o "patrimônio", muitas vezes ilegal e ilegítimo, de alguns tem que ser respeitado e defendido, nem que seja pela força da bala. Me preocupa o quanto a humanidade se afastou da natureza, sempre tão generosa...
Deitada em minha cabine, me perguntava quando o Estado iria começar a atuar de verdade na região, a interferir, a praticar a justiça. E, ainda, será que um dia o Brasil irá olhar para esta região, para esta realidade, para estas pessoas que ainda preservam fortes vínculos com a floresta, para estas comunidades que resistem à opressão dos que vêm de outras regiões do País? Será que um dia teremos orgulho de sermos brasileiros não só porque somos os melhores do mundo no futebol, porque temos o samba e a alegria reconhecidos internacionalmente como símbolos nacionais, ou pela beleza das mulheres, mas sim porque conseguimos superar crenças, comportamentos e valores provincianos e mesquinhos da época colonial, orgulho por morarmos em um País mais justo socialmente, mais equilibrado ambientalmente e menos violento?
Patrícia Bonilha é assessora de imprensa do Greenpeace a bordo do navio Arctic Sunrise
1 Comentários:
Aí, Pat!!
O blog está uma beleza!
Dê um abraço na galera aí!
Muita força para eles também.
E não custa ter cuiddo, sem se amedrontar.
Beijão,
Maurício
Por Anônimo, Às 1:16 PM
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